No livro Nossa Cultura… Ou o que restou dela, Theodore Dalrymple escreve: “Os homens cometem o mal dentro de um escopo disponível.” Em outras palavras, as brechas são dadas diariamente, pela desatenção aos valores mais fundamentais.
Composto por 26 ensaios sobre uma tal degradação, hoje tão confundida com novos valores, o livro tem apresentação de Rodrigo Constantino, que descreve o autor desta forma:
“Se há um autor de língua inglesa que faltava ser traduzido para o português, este é sem dúvida Theodore Dalrymple. O médico britânico, cujo nome verdadeiro é Anthony Daniels, é um dos mais influentes pensadores da atualidade. Com um viés conservador, e por isso mesmo avesso às ideologias e fórmulas mágicas ou abstratas, Dalrymple traz ao leitor profundo conhecimento de campo, empírico, formado de baixo para cima.”
Coleção Abertura Cultural
Com tradução de Maurício G. Righi, a publicação, que pertence à Coleção Abertura Cultural, é leitura ideal para interessados em crítica cultural e social.
Veja o que Theodore Dalrymple escreve sobre o impasse atual até na forma de se comunicar:
“O problema de perseverar na virtude e denunciar o vício, sem contudo parecer arrogante, estraga-prazer, sectário e obtuso se tornou uma questão tão problemática que os intelectuais tendem a negar que exista uma distinção entre as duas coisas, ou chegaram mesmo a inverter os seus valores. Por exemplo, no vocabulário da crítica de arte, não existe um termo mais elogioso do que ‘transgressivo’, como se a transgressão fosse um bem por si só, independentemente do que está sendo transgredido. Da mesma forma, quebrar um tabu e tornar-se herói, desconsiderando-se o conteúdo do tabu. Hoje em dia, que tipo é mais desprezível do que aquele que se agarra teimosamente em antigos insights morais?”
No ensaio “A Frivolidade do Mal”, Dalrymple acredita ser um absurdo presidiários pensarem que, porque cumpriram suas penas, pagaram suas dívidas com a sociedade: “O crime não pode ser tratado como um registro contábil.”
Nesse mesmo ensaio, traz de volta a questão do problema do mal, em uma interessante sequência de trechos: “a escala de mal de um ser humano não se esgota completamente em suas consequências práticas. Os homens cometem o mal dentro de um escopo disponível.”
“Talvez, a característica mais alarmante desse mal de baixa patente e altamente endêmico, justamente aquele tipo de mal que nos aproxima da concepção de pecado original, seja o fato de ser espontâneo e não ser compulsório. Ninguém obriga que as pessoas o cometam.”
Confira mais trechos de Nossa Cultura… Ou o que restou dela
Já no ensaio “Um Gosto pelo Perigo”, Theodore Dalrymple divide experiências que ele mesmo viveu, ilustrando como o ser humano tem atração pelo perigo, em menor ou maior escala: “Conheço as incomparáveis atrações do perigo.”
O autor de Nossa Cultura… Ou o que restou dela conta que, como um homem “comum e respeitável filho da classe média inglesa, com uma profissão regular” se colocou em situações “um tanto quanto insólitas”.
Theodore Dalrymple já foi perseguido pela polícia secreta sul-africana, por ter desrespeitado as leis do apartheid.
O autor de Vida na Sarjeta também conheceu o interior de uma delegacia policial nos Balcãs, sob o ponto de vista de um preso.
Dalrymple já foi deportado de Honduras para a Nicarágua, porque foi considerado comunista. Em El Salvador, tornou-se alvo de guerrilheiros porque deu carona a soldados do governo.
O psiquiatra, que também escreveu o livro Podres de Mimados, fecha o pensamento explicando que a atração pelo perigo é como uma droga:
“Conheci pessoas muito mais ávidas pela emoção do perigo do que eu. Para elas, o perigo funciona como uma droga e com o passar do tempo a tolerância a essa droga vai se desenvolvendo, de modo que é preciso aumentar a dose para se sentir o mesmo efeito.”
Nossa Cultura… Ou o que restou dela: mais trechos
No ensaio intitulado “Como Amar a Humanidade – e Como Não a Amar”, Theodore Dalrymple tece uma de suas ideias mais conhecidas:
“Quase todo intelectual alega considerar profundamente o bem-estar da humanidade, sobretudo o bem-estar dos pobres. Mas, sabendo-se que não há registro de nenhum genocídio que tenha ocorrido sem que seus perpetradores alegassem estar agindo em nome do bem-estar da humanidade, fica evidente que sentimentos filantrópicos podem assumir uma infinidade de formatos.”
O pensador inglês cita dois exemplos claros de um mesmo ideal, mas de alcances completamente distintos: Ivan Turgenev e Karl Marx.
A semelhança entre os dois chega a ser inacreditável. Por exemplo, ambos nasceram em 1818 e morreram em 1883, entre outros aspectos de experiências. Contudo, os dois escritores viam a vida — e o sofrimento humano! — de forma totalmente diferente.
De acordo com Dalrymple, “Turgenev via os seres humanos, indistintamente, como indivíduos dotados de consciência, caráter, sentimentos, virtudes e fraquezas morais.”
Já Karl Marx, na leitura do psiquiatra inglês, “sempre os via como flocos de neve numa avalanche, como ocorrências de forças gerais, como se não fossem integralmente humanos, uma vez que fundamentalmente condicionados pelas circunstâncias.”
Em resumo, e de forma didática, como é peculiar da escrita de Theodore Dalrymple: “Onde Turgenev enxergava homens e mulheres, Marx enxergava povo.”
Dalrymple encerra a ideia dizendo que esses dois tipos de olhares acerca do mundo persistem ainda em nossa época, e nos afetam profundamente, “para o bem ou para o mal”.
Listaríamos trechos interessantíssimos dos 26 ensaios que compõem o livro, mas, enfim, encerramos com o ensaio “Por que Havana Estava Condenada”, um texto que Dalrymple começa de forma muito sagaz:
“Quando não levada ao exagero, a decadência exala certo charme, afinal de contas, há romantismo nas ruínas, e de fato elas são tão românticas que os cavalheiros ingleses do século XVIII as construíam em seus jardins, como agradáveis e melancólicos lembretes sobre a transitoriedade da existência terrena.”
Abordando a liderança de Fidel Castro, Dalrymple, tece suas diferenças: “Fidel Castro, todavia, não é um aristocrata inglês do século XVIII, e Havana não é sua propriedade privada, para que possa usá-la como memento mori privado.”
“Memento mori” é uma saudação latina utilizada por monges católicos em seus mosteiros e significa “lembre-se que você também vai morrer”. Funciona como um exercício diário de aceitação da morte.
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