O organizador do box Antonio Conselheiro por ele mesmo apresenta neste texto exclusivo para o blog da É Realizações a circunstância em que se deram os trágicos episódios relacionados à Guerra de Canudos, a natureza da atuação de Antonio Conselheiro e a substância de seus escritos, reproduzidos e comentados na obra publicada pela Editora.
Pedro Lima Vasconcellos é mestre e livre-docente em Ciências da Religião, doutor em Ciências Sociais, pós-doutor em História e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Um autor e uma cidade
Belo Monte, Bahia, maio de 1895: no vilarejo que logo o país conheceria como Canudos, feito monstruoso ao ser apresentado como ridículo pivô de uma conspiração monarquista, devendo então ser destruído como resultado de providências que restaurassem a “ordem” e encaminhassem o “progresso”, um sexagenário obstinadamente escrevia…
Escrevia em meio a distintos afazeres como coordenar a construção de casinholas e igrejas, o plantio e cultivo das terras secas ao redor, todavia abençoadas pelas águas de um rio agraciado por improváveis chuvas, e aconselhar, aconselhar…
Envolvido com a viabilização do Belo Monte, Antonio Vicente Mendes Maciel cuidava tanto das coisas da terra como daquelas do céu, e as duas centenas e meia de páginas de suas anotações, finalmente editadas passados mais de cento e vinte anos, testemunham suas convicções enraizadas, os ideais apaixonados que deram sentido a seu empreendimento maior.
Presença inevitável na história brasileira de sangrentos capítulos em que, nos termos de Machado de Assis relidos por Ariano Suassuna, o país oficial, caricato e burlesco, esmaga o país real que é sua boa gente, o Belo Monte exige novos olhares, agora que as letras do Conselheiro se fazem acessíveis.
Euclides da Cunha não as conheceu; se as houvera lido, outra teria sido sua hermenêutica de Belo Monte, imortalizada em Os Sertões e praticamente imposta à consciência nacional desde então. O vilarejo convida a nova visita, guiada pelas páginas destes apontamentos, condição para um pertinente entendimento do Brasil.
Balizas inspiradoras
Antonio Conselheiro, uma das lideranças populares mais importantes de nossa história, teria entrado para a história, segundo Euclides, porque não havia vagas no hospício em que se desejava fosse internado.
Seria alguém que só faria sentido se nascido no século II, não dezessete séculos depois, “em plena era moderna”, personificando, portanto, o atraso ao qual nós enquanto nação estaríamos condenados e do qual necessitaríamos escapar para não desaparecermos. No caso do Belo Monte, o preço foi a destruição brutal, e, no caso do Conselheiro, sua caricatuziração no âmbito da consciência nacional.
Mas cabe rever, avaliando, na medida que nos seja possível, como ele mesmo concebia sua trajetória. Em dois momentos distintos o vemos delinear referências que lhe servem de horizonte. Primeiramente: andar pelas estradas recolhendo pedras para construir igrejas; em seguida: seguir para onde o chamam os mal-aventurados. Suas andanças pelo sertão o mostram fazendo ambas as coisas.
A articulação delas perfaz uma atividade qualificada, autorizada pela palavra que lhe é própria. Um conselheiro ambulante pelos solos poeirentos e quentíssimos do sertão que, mesmo quando estabelecido no Belo Monte, continua a pensar-se como peregrino, e como tal assina os dois cadernos saídos de sua lavra, um deles (o primeiro, em termos cronológicos) finalmente vindo à luz.
Um manuscrito entre ruínas: ideais para uma cidade
É que, partindo de Euclides, o líder do Belo Monte tem sido apresentado com epítetos que o associam ao atraso, à demência, quando não à heterodoxia e ao fanatismo.
Mais especificamente, o genial escritor se fixou no que, segundo ele, eram as palavras de Antonio Conselheiro ecoadas naquele sertão árido, devaneios decorrentes de uma oratória insana e bárbara, poderosa em sensibilizar almas ao mesmo tempo esfomeadas e inocentes, vítimas do atraso e da ignorância.
Aponta em direção radicalmente distinta a publicação de um conjunto de mais de duzentas páginas de um caderno subscrito pelo Conselheiro, com a reprodução das folhas em que sua cuidadosa caligrafia se revela, acompanhada de dupla transcrição – na ortografia da época e na atualizada –, que por sua vez é complementada com abundantes notas e comentários.
São páginas que testemunham, da parte de quem por elas se responsabiliza, uma síntese bem combinada entre invulgar conhecimento da Bíblia e de autores cristãos, de um lado, e uma sensibilidade acentuada àqueles nós que desafiam a tessitura dos laços sociais e constrangem os humanos naquilo que desconhecem de si mesmos, por outro.
E permitem uma compreensão diferenciada e inovadora dos sentidos inusitados que terão assumido, para líder e liderados, o empreendimento de um povoado que bem articulasse anseios por irmandade e salvação.
Assim, só na leitura cuidadosa do texto é que se poderá situar de maneira mais pertinente a complexa figura deste quixeramobimense, a quem não cabe simplesmente rotular com epítetos tão eloquentes quanto enganosos: falar, por exemplo, da “ortodoxia” do Conselheiro revela desconhecimento dos meandros da dinâmica religiosa em seus liames internos e em seus entrelaçamentos com tantas dimensões da vida social.
Situemos a coisa.
Qual Morus e Campanella conceberam, e como após ele agiriam os rebeldes do Contestado na constituição de “vilas santas” em territórios dos atuais Paraná e Santa Catarina, Antonio Conselheiro, premido por circunstâncias muito específicas, entendeu que urgia reerguer um povoado no sertão ressequido do nordeste da Bahia, para que valores fundamentais que davam sentido a seu peregrinar e ao do grupo que o acompanhava continuassem a conferir-lhes direção nos trabalhos e dias.
É que algumas das mudanças estabelecidas pela República impactavam profundamente a vida dos mal-aventurados; daí a fixação no Canudos que se torna Belo Monte. Uma história surpreendente, na medida em que para ali convergem tantas e tantas demandas de gente mal-aventurada, boa parte recém-saída da escravidão para a indigência e, em não poucos casos, à re-escravidão, se assim se pode dizer.
Grupos indígenas desalojados de suas terras vão para lá: poucos bens, muitas esperanças, sonhos, expectativas. As palavras do Conselheiro, ecoando no sertão e replicada ainda mais, atraem a um lugar por alguns descrito como se fora a réplica da terra da promissão, “onde corre um rio de leite e os barrancos são de cuscuz de milho”.
Mas elas não só continuariam a reverberar em corações e mentes; ganhariam as formas da letra.
Entre letra e voz: a política da salvação
Belo Monte se torna problema porque não se pagam os impostos devidos à República e porque as fazendas da região se veem esvaziadas das massas camponesas nelas sub-escravizadas.
Todos os esforços serão envidados em vistas à dissolução “pacífica” do arraial que desafiava coronéis e padres, entre os quais se destaca uma missão presidida por um missionário capuchinho experimentado ao mesmo tempo que desastrado – ou quem sabe agir de maneira arrogante que soasse inábil fizesse parte dos planos…
Quando a missão chega, Antonio Conselheiro acabava de copiar o Novo Testamento até o fim do capítulo 12 da carta de Paulo aos Romanos.
Três dias depois de encerrada – abruptamente – a missão, e de seus responsáveis terem tratado de regressar, ele recomeça a escrever, na continuação da transcrição interrompida, tecendo seus Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a Salvação dos Homens.
Recusava-se a continuar transcrevendo o texto sagrado – delicado impasse – justamente naquela passagem invocada pelo missionário para exigir-lhe a submissão aos poderes constituídos.
Seja como for, os Apontamentos… nos dão acesso, mesmo indiretamente, à voz do Conselheiro que ecoava nos ouvidos e corações da gente que com ele fazia o Belo Monte e que com ele partilhou o destino trágico. Eles resultam da interação entre líder e séquito. A leitura do material testemunha que Antonio Conselheiro era leitor dos poucos livros que lhe chegaram às mãos, basicamente de conteúdo religioso.
Copiava, recriava e comentava o que lia: livros como o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, do século XVIII, ou o então famoso Missão Abreviada, do padre Manoel José Gonçalves Couto. Ele subverte mesmo a ambos, na medida em que expõe a salvação à luz de algo como uma obsessão infinita de um Deus que não para de fazer inventos para se ver amado pelos homens.
Sim, a salvação: em torno dela giram muitas das tensões que levarão o Belo Monte à brutal destruição. Horrorizado, João Evangelista de Monte Marciano, o missionário acima citado, ouve da gente belomontense que ela não precisava de padres para se salvar, pois tem o seu Conselheiro.
Belo Monte, sem o querer, estabelecia uma cisão naquilo que se poderia chamar o monopólio da salvação exercido pelos membros do clero, altamente capacitados, segundo uma testemunha, em fechar sem piedade as portas do céu.
O Conselheiro conhece os caminhos da salvação, trata de abri-las, e isto faz toda diferença e dá sentido a sua obra, não só aquela escrita – a rigor esta é menos importante, nem foi feita para ser publicada, são apenas apontamentos.
Eles, no entanto, são orgânicos, enquanto articulados à sua grandiosa obra: edificar uma cidade que, em seu cotidiano, encarnasse princípios e valores que viabilizassem a salvação eterna tão almejada: a atenção aos mais pobres e abandonados, o amparo à gente desvalida, o senso comunitário alimentado a todo tempo, as rezas e as regras.
Inspirações
Num contexto – que nesse pormenor quase não se distingue do nosso – em que o progresso é pensado às custas do sacrifício da sua população, aquela parcela gigantesca mais frágil e sofrida, vista não poucas vezes como estorvo que trava, Antonio Conselheiro, ao conceber o Belo Monte, aponta outro caminho, inclusivo, da gente abandonada pelos poderes civil e religioso: ela não é problema, mas solução.
É possível fazer uma cidade com ela e dela. Nesta urbe que Euclides adjetivou como monstruosa o líder é mesmo uma figura nodal: “queremos acompanhar o nosso Conselheiro”, dizia o missionário da gente que ele ameaçava – aqui com a brutal guerra e no além com as mais sádicas punições infernais – e Machado se perguntava pelos vínculos, para ele enigmáticos, que ligavam o Conselheiro a sua gente.
É que este o Belo Monte como um espaço e uma experiência em que os mal-aventurados podem veicular e fazer concretizarem-se suas demandas cotidianas e mínimas por decência e dignidade.
Da interação com esta gente, das leituras que em meio a tantas outras incumbências que ele realiza, de livros e da vida – do sertão e do Brasil –, em seu fazimento cotidiano, emerge este conjunto de apontamentos, testemunha escrita de tantas palavras e conselhos distribuídos, de uma “regra ensinada pelo Peregrino”, nos dizeres de um afilhado seu, que fazia grande o Belo Monte de seu tempo: trabalhos muitos e muita reza, cuidados mútuos a aproximarem e fazerem solidarizar-se grandes e pequenos.
Esta regra estaria embasada, ainda segundo Honório Vilanova, no ensinamento que o Conselheiro estava disposto a sempre comunicar sobre os dez mandamentos da lei de Deus. Talvez, então, não será coincidência que encontremos várias vozes a associarem, em trovas e outras expressões, o Conselheiro a Moisés, e o Cocorobó, colina mais alta da região, ao monte Sinai.
Também não será coincidência que meditações sobre o Decálogo perfaçam praticamente metade dos Apontamentos… enfim disponibilizados ao conhecimento geral nesta preciosa edição preparada por É Realizações.
Quem sabe se possa, assim, imaginar como é que a “fala mansa” do Conselheiro repercutia fundo em sua gente, que a tomava não só como alento, mas também como indicação do caminho a seguir em vistas ao bem-viver coletivo aqui e rumo à salvação no além.
Saiba mais sobre o conteúdo do box Antonio Conselheiro por ele mesmo assistindo à palestra de lançamento do organizador, e autor deste post do blog, Pedro Lima Vasconcellos:
Meu estudo, que acompanha esta transcrição dos apontamentos do Conselheiro, os toma como imprescindíveis para o conhecimento de seu autor, das leituras que o inspiravam, dos conteúdos que recebia e como os recriava, de suas filiações espirituais.
E também de facetas decisivas do empreendimento Belo Monte: vila que tratava de compatibilizar novas sociabilidades e esperanças refeitas de salvação, num cenário em que a ação conjunta de monopólios de poder, vinculados ao latifúndio, à casta de coronéis e às mais altas esferas do clero, ceifava vidas na terra e ameaçava sonhos pelo céu.
Trato de mostrar como a abordagem da escrita do Conselheiro, praticamente ignorada até agora, é primordial para uma hermenêutica da vida do arraial liberta dos modelos interpretativos asfixiantes estabelecidos por Euclides e mimetizados ao longo do século que se seguiu.
Os conteúdos que ela veicula têm enorme potencial para deslindar facetas mal compreendidas do vilarejo cuja existência se fez insuportável para os poderes de então. Tem-se, afinal, a possibilidade de recolocar mais adequadamente a saga conselheirista nas páginas da história do povo brasileiro, história eivada de promessas e frustrações, de resistências e derramamentos de sangue.
Tarefa que reputo tão oportuna quanto necessária, e mesmo urgente, nos tempos que nos cabe viver e tecer, que Raduan Nassar não temeu qualificar como sombrios.
Não perca tempo! Conheça agora os escritos de Antonio Conselheiro e o comentário de Pedro Lima Vasconcellos, clicando no link a seguir: Antonio Conselheiro por ele mesmo.