SOBRE O LIVRO
Merecedor de uma história à parte, o destino da obra de João Escoto Erígena serve de emblema da sua potência desconcertante. Já em sua época, o século IX, o irlandês foi amplamente lido como articulador das artes liberais (trivium e quadrivium) e como tradutor para o latim de grandes autores cristãos de língua grega. Cerca de 400 anos mais tarde, seu pensamento foi alvo de condenação eclesiástica. Embora curta, a censura colocou em evidência os pontos de contraste entre sua elaboração metafísica e formulações mais corriqueiras da doutrina cristã. Hoje, como na verdade há longo tempo, é precisamente nesses pontos que se percebe a importância de Erígena para o desenvolvimento da escolástica, para o aprofundamento da ortodoxia e, mesmo, para a interlocução da teologia com a filosofia moderna. Seu escrito magno – composto de cinco tomos –, De Divisione Naturae ou Periphyseon, receberá aqui pela primeira vez uma tradução completa à língua portuguesa. Começando pelo presente volume: Da Divisão da Natureza - Livro I, texto que define os contornos da ontologia, ou da teontologia, erigeniana.
Redigido como um diálogo filosófico de formato aparentado ao do Timeu de Platão, o Periphyseon examina os diferentes âmbitos da natureza (isto é, da realidade integral – todas as coisas que são e todas as coisas que não são) numa sequência que se inicia e se conclui com Deus. Já por essa estrutura, que enxerga no real um Todo uno atravessado pela presença divina, a obra revela a sua especificidade. Seja a criação, seja a Divindade surgem como temas tão desassombradamente refletidos quanto piedosamente estimados. Deus “é o Intelecto de tudo”, “é o lugar e o limite de todas as coisas”; por ser assim próximo é que se pode especular sobre ele, por ser assim inabarcável é que tudo quanto se lhe atribui é na verdade por ele ultrapassado. Deus é supraessencial, é mais do que verdadeiro, é mais do que bom, é mais do que Deus. Em Da Divisão da Natureza - Livro I, João Escoto Erígena se detém nesta que é para ele a dimensão primeira de tudo o que há: o Divino como realidade que cria e não é criada. É só a tudo o que não é Deus que, como explorarão os volumes seguintes, as nossas ideias, finitas, se aplicarão de modo próprio.